segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Capítulo 3: Um caso difícil

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Other World – Capítulo 3
Um caso difícil
por Lilian Kate Mazaki – julho 2013


Anna avistou o pequeno ajuntamento de curiosos logo que as portas do elevador se abriram. Diversos moradores cochichavam, esticando o pescoço, tentando enxergar um pouco mais da entrada do apartamento quinhentos e sete, mas a polícia fazia o seu trabalho de impedir qualquer aproximação da cena. Anna respirou fundo e caminhou corredor adentro, disfarçando o medo e ansiedade que explodiam no seu peito:

Deem passagem, sou a representante da OMM, por favor. pediu ela, chegando aos moradores do prédio. A menção da organização na qual Anna trabalhava já foi o suficiente para fazer todos a fintar com um ar de curiosidade. Afastaram-se sem questionamentos, permitindo que ela chegasse até o cinturão da polícia.

Por favor, senhorita, sua identificação. disse o policial logo à sua frente, observando-a sem piscar.

Claro. disse ela, tirando uma pequena placa de vidro onde estava escrito de maneira permanente as informações da engenheira, além do brasão da organização paramilitar.

Certo. disse o homem, após verificar com seus olhos treinados a veracidade daquele documento. Deu passagem e Anna apressou-se em entrar no apartamento que estava sendo cercado.

A engenheira chegou na sala de estar do apartamento e respirou um tanto aliviada ao perceber que já haviam removido os corpos. Ainda haviam marcas de chão, nos arredores das sinalizações brancas que marcavam onde os corpos de Jonny e Clarisse Lake haviam perdido a vida. Meia dúzia de legistas apontavam aparelhos de medição e registro de dados em todas as direções. O lugar estava uma bagunça, mas não pareciam ser sinais de luta, na visão da mulher, era mais como se alguém tivesse atirado os objetos com fúria.

Anna trocou palavras com alguns dos legistas e as impressões que estes lhe passavam casaram perfeitamente com suas ideias. O casal havia sido morto com disparos de arma de fogo e a filha do casal fora apenas ferida na cabeça. A menção da criança havia despertado os sentidos de Anna para seu real objetivo ao ir até a cena do crime. Perguntou onde estaria a filha e lhe foi dito que a mesma estava recebendo atendimento médico na unidade móvel estacionada na entrada do condomínio.

A engenheira deu uma última olhada no panorama da cena e sentiu a dor tentar se apoderar de si. Sacudiu a cabeça e lembrou-se que estava trabalhando. Não era fácil encarar tão de perto a morte de dois amigos de tantos anos, ainda mais daquela maneira violenta e misteriosa, mas precisava cumprir seu dever. Havia alguém que precisava de sua atuação séria e controlada naquele momento. Pegou um casado juvenil que havia sido deixado esquecido nas costas de uma cadeira, intocado em todo aquele caos, e saiu do quinhentos e sete pela última vez em sua vida.

A descida do elevador pareceu demorar infinitamente mais do que a subida. A ansiedade corroía o estômago da cientista. Disparou em direção a entrada do edifício assim que as portas se abriram e logo ela viu a figura da filha dos Lake, sentada em uma maca, sozinha como se tivesse sido esquecida ali. Sentiu ódio da equipe de atendimento que não sabia dar assistência a uma vítima num momento tão importante. Sentiu que era a única pessoa que poderia cumprir este papel. Isto lhe deu confiança.

Juliana? ― perguntou a engenheira Anna, tentando colocar toda a sua simpatia na voz. A garota que devia ter pouco mais de doze anos a encarou sem surpresa.

Sim, sou eu. ― respondeu. Anna não conseguiu deixar de sentir o peito esquentar quando os olhos esverdeados da garota encararam os seus. Eram idênticos aos do, agora falecido, Jonny Lake.

Meu nome é Anna Door Silveira. Sou engenheira junior da área de desenvolvimento em neurociência da OMM. ― apresentou-se a mulher. ― Estou aqui para levá-la para algum local mais confortável, enquanto as coisas se ajeitam.
A mulher esperava que Juliana fizesse alguma pergunta na primeira oportunidade, ou que ao menos fosse dizer alguma coisa de toda aquela situação, mas tudo o que Juliana fez foi concordar com a cabeça, sem dizer nada e esperar a próxima ação de Anna. Aquilo a surpreendeu e intrigou:

Ah, Juliana, eu preciso esclarecer o que se sabe dos acontecimentos, mesmo os que você já tenha conhecimento, apenas para garantir que você não vá ter alguma ideia errada sobre a sua situação a partir de agora.

Certo. ― concordou a garota, sem demonstrar qualquer emoção. A atitude passiva da garota estava deixando Anna a cada momento mais desconfortável.


Bom. ― começou, organizando os pensamentos para tentar falar as coisas de modo menos agressivo o possível para a menina. ― Ainda não se tem certeza sobre todas as circunstâncias do incidente que você presenciou, Julliana, mas, infelizmente, é certo que seus pais não resistiram aos ferimentos até a equipe médica chegar até o apartamento.

Anna esperou que suas palavras trouxessem à tona os sentimentos da garota, que deveriam estar reprimidos pelo choque e também pela letargia causada pela pancada na cabeça. Porém não foi isso o que aconteceu. Juliana manteve sua expressão imparcial e falou de maneira mais calma do que a própria adulta sobre a situação:
Eu já imaginava que isso sido isso. Eu não consegui ver nada do que aconteceu, mas ouvi minha mãe falando, antes de apagar. ― contou a garota. ― Eu percebi que algo teria acontecido a ela também, quando acordei só eu entre os médicos.

Eu. . . Ah, eu sinto muito Juliana. Sabe, eu era amiga de trabalho deles. Estou ainda chocada com tudo isso ter acontecido de repente. ― Anna sentiu-se ridícula. Era ela que estava falando sobre seus sentimentos com a vítima e não o contrário!

Nem sei o que pensar e prefiro não pensar também. ― disse Juliana com a mesma voz natural de antes, ainda que finalmente transparecesse alguma emoção. A confusão.

Num primeiro momento, Anna levou Juliana no seu carro para a sede da OMM. Seria ela quem teria que contatar os parentes dos Lake, para que tomassem alguma providência quanto à orfã. A cientista não estava acostumada a nada daquilo, havia estudando engenharia justamente por se achar péssima para lidar com pessoas, por tanto toda aquela situação estava lhe deixando muito tensa.

Juliana também não cooperava em nada. Durante toda a viagem de carro, cerca de quarenta minutos, não abriu a boca nenhuma vez que não fosse para responder as perguntas esporádicas que Anna lhe dirigia. Não expressava tristeza, ou medo. A garota tinha apenas uma expressão vazia de qualquer emotividade que chegava a oprimir a adulta que lhe conduzia.

Devido aos preparativos para um experimento militar que ocorreria dentro de três meses, no início do próximo ano, a sede da OMM havia ganhado pavilhões novos, com dormitórios e áreas de convivência para longos períodos. As instalações ainda estavam vazias, porém foram ideais para acomodar Juliana enquanto Anna fazia contato com seus avós maternos. No início da noite daquele mesmo dia foram enviados para a sede uma caixa com os pertences pessoais da garota, que foram devidamente levados para o quarto onde a garota foi colocada.

Anna tentou contatar de todas as maneiras, naquela mesma noite, os parentes dos Lake, porém a tarefa se mostrou muito mais difícil do que acreditara ser. Por volta das duas da manhã, Anna teve que ceder ao cansaço e descansar durante algumas horas no laboratório antes de ir diretamente ao endereço dos pais de Clarisse Lake.

Nesse meio tempo Juliana permaneceu em seu quarto, relendo alguns de seus livros que lhe haviam sido trazidos. Ela não chorou, mas também não chegou a dormir. Também não teria se alimentado se Anna não aparecesse no início da manhã para leva-lá para o refeitório dos funcionários da OMM.

Depois disso Juliana passou algumas horas sentada junto à baia de trabalho de Anna, enquanto a mesma saíra para trazer seus avós. Essas horas foram um pouco mais interessantes para a garota, que ficou a mirar os diversos instrumentos e relatórios sobre a estação de trabalho. Porém antes que a garota fosse capaz de tomar a atitude de tocar no computador, Anna voltou acompanhada de um casal de cabelos grisalho que ela reconheceu imediatamente.

Anna se sentiu muito mais incomodada com a cena a seguir do que a menina orfã: os pais de Clarisse Lake não chegaram a dirigir a palavra à Juliana, apenas fizeram perguntas à engenheira sobre os acontecimentos no apartamento de Jonny e Clarisse. A cientista explicou em detalhes todas as informações que a OMM já tinha certeza sobre o caso, o que não era muita coisa, pois a morte do casal parecia um completo mistério.

Assim que terminou essa etapa, Anna emendou o assunto da guarda de Juliana, só que neste ponto, a engenheira foi completamesnte surpreendida. O casal recusou prontamente assumir os cuidados da neta, o que despertou a exasperação na engenheira:

Vocês preferem que a neta de vocês vá pra um orfanato ou algo assim?! ― perguntou Anna, sem conseguir se conter em seu estupor.

Não preferimos. ― disse a mãe de Clarisse Lake, com um tom áspero. ― Nós sabemos que Jonny pretendia colocar a filha nesta missão que vocês estão preparando. Poderiam ficar com ela desde já.

Anna ficou boquiaberta. A frieza com que tratavam a situação era anormal. E sequer se referiam à neta pelo nome.

Como podem ser tão frios? ― questionou a engenheira, sem esconder a indignação com aquela atitude. A censura era evidente a cada sílaba.

Frios? ― repetiu a mãe de Clarisse Lake, com um tom de superioridade. ― Você não conhece essa pequena estranha. Provavelmente ela ficará aliviada em não vir conosco.

A engenheira correu os olhos para Juliana, mas esta parecia completamente alienada à conversa, passando os olhos pelas páginas de um dos relatórios que havia pegado da mesa.

Ela é só uma menina. Uma criança que perdeu os pais. Como podem julgar uma criança desse jeito?

Faça o que quiser, assinaremos o que for preciso. ― cortou o avô de Juliana, ignorando a indagação de Anna. Dizendo isto, pegou a esposa pelos ombros e saíram da sala sem dizer mais nada.

Demoraram alguns minutos para que Anna conseguisse se acalmar o suficiente para olhar de volta para Juliana. Uma sensação de impotência se apoderou do seu peito. De repente Juliana tirou os olhos dos papéis e lhe fintou:

Não se importe com isso. Eles nunca gostaram de mim. ― disse a garota, com sua inalterável expressão vazia de emoção. Expressão essa que fizeram os olhos de Anna arder.

Você não fica mal por isso? ― a engenheira era incapaz de decifrar aquela pessoa tão jovem à sua frente. A sensação de incapacidade estava ao máximo naquele momento.

Acho que não. ― foi a resposta de Juliana Lake.

Anna só viu aquela jovem mais duas vezes, na semana seguinte. Foi incapaz de fazer alguma coisa para mudar a decisão dos pais de Clarisse Lake. Ainda que tentasse ao máximo ajudar a orfã, por fim foi vencida pela frieza e distância de Juliana. Abandonou aquela missão e pediu transferência. Aquele fora o caso mais difícil que enfrentara na carreira. A cientista partiu para a unidade da OMM na Europa sem saber o que aconteceria a seguir com a única descendente do renomado Jonny Lake.

domingo, 11 de agosto de 2013

Capítulo 2: A descoberta que mudou o mundo


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Disclaimer: “Other World” é uma web-série independente, cuja a autoria pertence à Lilian Kate Mazaki, publicado originalmente no blog http://otherworld-serie.blogspot.com.br

Other World – Capítulo 2
A descoberta que mudou o mundo
por Lilian Kate Mazaki – julho 2013

Jeff Darto era um pesquisador de física quântica, empregado em um projeto ousado, porém totalmente desacreditado do governo latino. Uma pesquisa iniciada em uma universidade privada como meio de obter verba pública de um grande concurso. Um empreendimento científico que desde sua qualificação fora alvo de comentários sobre uma suposta farsa com o único intuito de consumir recursos do Estado. A verdade é que nem mesmo Jeff acreditava que mesmo com toda a parafernalha ultrapassada cedida pelo governo americano para o experimento, conseguiriam obter algum resultado concreto de quase rompimento do tecido dimensional inerente a todo o Universo.

Era ele quem estava cobrindo o turno da noite de um dos colegas, pela terceira vez naquela semana na noite que mudou por completo o rumo daquele projeto. A única preocupação na mente de Jeff quando sentou-se ao seu posto estava na conversa séria que pretendia ter com seus colegas. Se continuasse naquele ritmo, em breve a secretaria de saúde iria interditar o laboratório sob suspeita de alguma doença rara e contagiosa que estaria afetando os funcionários acometidos por viroses quase todas as semanas.

E lá estava ele novamente, observando através do vidro de segurança a sala onde todos os equipamentos fundamentais do experimento trabalhavam, dia e noite. Uma série de antenas e emissores de lasers que se cruzavam e emitiam um zunido incessante e enlouquecedor para quem entrasse naquele espaço sem devidas proteções auriculares.

Depois de chegar à conclusão de que a potência do equipamento sucateado que receberam eram insuficiente para alcançar a quantidade de energia necessária para afetar o nível mais fundamental da matéria subatômica, os idealizadores do projeto haviam adotado a velha tática de força bruta: forçariam os equipamentos vinte e quatro horas por dia, com a intenção de fragilizar aos poucos a estrutura do tecido dimensional.

Aos ouvidos de Jeff e de quase qualquer pessoa com o mínimo de noção dos estudos físicos dos últimos quinhentos anos, aquela ideia soava como um besteirol sem limites. Era por esse motivo que naquela noite, como em todo o tempo em que precisava fazer o trabalho de monitoria do experimento, Jeff dispensava mais atenção no seu perfil na rede social do momento do que se dando ao trabalho de olhar pela janela da sala de observação.

Alias Jeff era bastante dedicado no seu perfil online, tanto que demorou vários minutos para que percebesse a variação cada vez mais expressiva mostrada nos marcadores normalmente estáticos, que monitoravam o experimento. Foi apenas quando um dos monitores que exibiam constantemente cadeias de números relativos aos sensores de temperatura da sala de experimento começou a exibir uma mensagem em vermelho e um som de alerta foi emitido que o pesquisador tirou os olhos da última discussão entre apreciadores de culinária polonesa.

Jeff levantou-se da cadeira num salto, derrubando a mesma com um estrondo que foi parcialmente abafado pelos dois outros sons de alerta que iniciaram neste momento. Os olhos escuros do físico estavam arregalados e as sobrancelhas erguidas o bastante para fazer sua testa parecer toda enrugada. Ele tateou na mesa, à procura do telefone, mas precisou acalmar-se durante alguns instantes para conseguir discar o ramal da gerência:

Jeff? Você está cobrindo o Gian também? O que aconteceu?” foi o que a voz grave do outro lado da linha disse, assim que ouviu a voz trêmula do pesquisador.

Dan. . .” começou Jeff, reconhecendo a voz do seu ex-professor de mestrado. “Aconteceu. . . Uma coisa. . . Aqui.”

Na manhã do dia seguinte, antes de comunicar à qualquer força governamental, a desacreditada equipe de pesquisa anunciou o acontecimento que marcou definitivamente todo o mundo globalizado dali em diante: a abertura do tecido dimensional e a possível descoberta de uma nova realidade para além desta passagem.


Os meses que se seguiram deste fato foram os mais conturbados que todos os tipos de cientista conseguiam se recordar de ter existido. Os exércitos de vários países tentaram obter soberania sobre o “fenômeno” para realizar os experimentos e pesquisas necessários. Em uma atitude cooperativa das principais potências mundiais foi estabelecido o órgão regulamentador de todos os assuntos relativos à descoberta: Organização Mundial de Exploração do Outro Mundo, que ficou mais conhecida pela sigla de O.M.M. O órgão, um misto de corporação científica e militar, que tomou à frente de todo o trabalho de reconhecimento e entendimento do “fenômeno”.

O fenômeno, que se ganhou um aspecto permanente de abertura no tecido do espaço-tempo, passou a ser chamado de “portal” e os primeiros experimentos se deram em descobrir que existia alguma possibilidade de cruzar o portal, o que provou ser possível. Porém não tardaram a ocorrer fatalidades.

Uma pequena comitiva de soldados foram os primeiros a pisar e explorar os arredores do “outro lado” do portal. Porém, mesmo usando equipamentos de proteção, a atmosfera do Outro Mundo continha partículas desconhecidas que se infiltraram pelos filtros das máscaras e brechas nas roupas dos mesmos. O resultado foi catastrófico: quatro dos soldados da missão não conseguiram sequer retornar ao portal antes de cair, praticamente mortos. Dos que retornaram, apenas três sobreviveram, mesmo após a remoção de qualquer vestígio do Outro Mundo e a aplicação de medicamentos emergenciais. Este episódio causou um grande atraso no desenvolvimento na exploração do local hostil. Porém, ainda que a passos dificultosos, o Homem seguiu sua jornada de descoberta deste lugar.

Todos esses fatos ocorreram mais de cinquenta anos antes do misterioso assassinato de Jonny e Clarice Lake, em um condomínio de classe alta, no centro da metrópole onde foi estabelecida a sede da O.M.M.

A título de curiosidade, Jeff Darto foi o segundo presidente de pesquisa internacional da Organização Mundial de Exploração do Outro Mundo.