Other
World – Capítulo 3
Um
caso difícil
por Lilian Kate Mazaki – julho
2013
Anna avistou o pequeno ajuntamento de
curiosos logo que as portas do elevador se abriram. Diversos
moradores cochichavam, esticando o pescoço, tentando enxergar um
pouco mais da entrada do apartamento quinhentos e sete, mas a polícia
fazia o seu trabalho de impedir qualquer aproximação da cena. Anna
respirou fundo e caminhou corredor adentro, disfarçando o medo e
ansiedade que explodiam no seu peito:
― Deem passagem, sou a representante
da OMM, por favor. ― pediu
ela, chegando aos moradores do prédio. A menção da organização
na qual Anna trabalhava já foi o suficiente para fazer todos a
fintar com um ar de curiosidade. Afastaram-se sem questionamentos,
permitindo que ela chegasse até o cinturão da polícia.
― Por favor, senhorita, sua
identificação. ― disse o
policial logo à sua frente, observando-a sem piscar.
― Claro. ―
disse ela, tirando uma pequena placa de vidro onde estava escrito de
maneira permanente as informações da engenheira, além do brasão
da organização paramilitar.
― Certo. ―
disse o homem, após verificar com seus olhos treinados a veracidade
daquele documento. Deu passagem e Anna apressou-se em entrar no
apartamento que estava sendo cercado.
A engenheira chegou na sala de estar
do apartamento e respirou um tanto aliviada ao perceber que já
haviam removido os corpos. Ainda haviam marcas de chão, nos
arredores das sinalizações brancas que marcavam onde os corpos de
Jonny e Clarisse Lake haviam perdido a vida. Meia dúzia de legistas
apontavam aparelhos de medição e registro de dados em todas as
direções. O lugar estava uma bagunça, mas não pareciam ser sinais
de luta, na visão da mulher, era mais como se alguém tivesse
atirado os objetos com fúria.
Anna trocou palavras com alguns dos
legistas e as impressões que estes lhe passavam casaram
perfeitamente com suas ideias. O casal havia sido morto com disparos
de arma de fogo e a filha do casal fora apenas ferida na cabeça. A
menção da criança havia despertado os sentidos de Anna para seu
real objetivo ao ir até a cena do crime. Perguntou onde estaria a
filha e lhe foi dito que a mesma estava recebendo atendimento médico
na unidade móvel estacionada na entrada do condomínio.
A engenheira deu uma última olhada no
panorama da cena e sentiu a dor tentar se apoderar de si. Sacudiu a
cabeça e lembrou-se que estava trabalhando. Não era fácil encarar
tão de perto a morte de dois amigos de tantos anos, ainda mais
daquela maneira violenta e misteriosa, mas precisava cumprir seu
dever. Havia alguém que precisava de sua atuação séria e
controlada naquele momento. Pegou um casado juvenil que havia sido
deixado esquecido nas costas de uma cadeira, intocado em todo aquele
caos, e saiu do quinhentos e sete pela última vez em sua vida.
A descida do elevador pareceu demorar
infinitamente mais do que a subida. A ansiedade corroía o estômago
da cientista. Disparou em direção a entrada do edifício assim que
as portas se abriram e logo ela viu a figura da filha dos Lake,
sentada em uma maca, sozinha como se tivesse sido esquecida ali.
Sentiu ódio da equipe de atendimento que não sabia dar assistência
a uma vítima num momento tão importante. Sentiu que era a única
pessoa que poderia cumprir este papel. Isto lhe deu confiança.
― Juliana? ― perguntou a
engenheira Anna, tentando colocar toda a sua simpatia na voz. A
garota que devia ter pouco mais de doze anos a encarou sem surpresa.
― Sim, sou eu. ― respondeu. Anna
não conseguiu deixar de sentir o peito esquentar quando os olhos
esverdeados da garota encararam os seus. Eram idênticos aos do,
agora falecido, Jonny Lake.
― Meu nome é Anna Door Silveira.
Sou engenheira junior da área de desenvolvimento em neurociência da
OMM. ― apresentou-se a mulher. ― Estou aqui para levá-la para
algum local mais confortável, enquanto as coisas se ajeitam.
A mulher esperava que Juliana fizesse
alguma pergunta na primeira oportunidade, ou que ao menos fosse dizer
alguma coisa de toda aquela situação, mas tudo o que Juliana fez
foi concordar com a cabeça, sem dizer nada e esperar a próxima ação
de Anna. Aquilo a surpreendeu e intrigou:
― Ah, Juliana, eu preciso esclarecer
o que se sabe dos acontecimentos, mesmo os que você já tenha
conhecimento, apenas para garantir que você não vá ter alguma
ideia errada sobre a sua situação a partir de agora.
― Certo. ― concordou a garota, sem
demonstrar qualquer emoção. A atitude passiva da garota estava
deixando Anna a cada momento mais desconfortável.
― Bom. ― começou, organizando os
pensamentos para tentar falar as coisas de modo menos agressivo o
possível para a menina. ― Ainda não se tem certeza sobre todas as
circunstâncias do incidente que você presenciou, Julliana, mas,
infelizmente, é certo que seus pais não resistiram aos ferimentos
até a equipe médica chegar até o apartamento.
Anna esperou que suas palavras trouxessem à tona os sentimentos da garota, que deveriam estar reprimidos pelo choque e também pela letargia causada pela pancada na cabeça. Porém não foi isso o que aconteceu. Juliana manteve sua expressão imparcial e falou de maneira mais calma do que a própria adulta sobre a situação:
Anna esperou que suas palavras trouxessem à tona os sentimentos da garota, que deveriam estar reprimidos pelo choque e também pela letargia causada pela pancada na cabeça. Porém não foi isso o que aconteceu. Juliana manteve sua expressão imparcial e falou de maneira mais calma do que a própria adulta sobre a situação:
― Eu já imaginava que isso sido
isso. Eu não consegui ver nada do que aconteceu, mas ouvi minha mãe
falando, antes de apagar. ― contou a garota. ― Eu percebi que
algo teria acontecido a ela também, quando acordei só eu entre os
médicos.
― Eu. . . Ah, eu sinto muito
Juliana. Sabe, eu era amiga de trabalho deles. Estou ainda chocada
com tudo isso ter acontecido de repente. ― Anna sentiu-se ridícula.
Era ela que estava falando sobre seus sentimentos com a vítima e não
o contrário!
― Nem sei o que pensar e prefiro não
pensar também. ― disse Juliana com a mesma voz natural de antes,
ainda que finalmente transparecesse alguma emoção. A confusão.
Num primeiro momento, Anna levou Juliana no seu carro para a sede da OMM. Seria ela quem teria que contatar os parentes dos Lake, para que tomassem alguma providência quanto à orfã. A cientista não estava acostumada a nada daquilo, havia estudando engenharia justamente por se achar péssima para lidar com pessoas, por tanto toda aquela situação estava lhe deixando muito tensa.
Num primeiro momento, Anna levou Juliana no seu carro para a sede da OMM. Seria ela quem teria que contatar os parentes dos Lake, para que tomassem alguma providência quanto à orfã. A cientista não estava acostumada a nada daquilo, havia estudando engenharia justamente por se achar péssima para lidar com pessoas, por tanto toda aquela situação estava lhe deixando muito tensa.
Juliana também não cooperava em
nada. Durante toda a viagem de carro, cerca de quarenta minutos, não
abriu a boca nenhuma vez que não fosse para responder as perguntas
esporádicas que Anna lhe dirigia. Não expressava tristeza, ou medo.
A garota tinha apenas uma expressão vazia de qualquer emotividade
que chegava a oprimir a adulta que lhe conduzia.
Devido aos preparativos para um
experimento militar que ocorreria dentro de três meses, no início
do próximo ano, a sede da OMM havia ganhado pavilhões novos, com
dormitórios e áreas de convivência para longos períodos. As
instalações ainda estavam vazias, porém foram ideais para acomodar
Juliana enquanto Anna fazia contato com seus avós maternos. No
início da noite daquele mesmo dia foram enviados para a sede uma
caixa com os pertences pessoais da garota, que foram devidamente
levados para o quarto onde a garota foi colocada.
Anna tentou contatar de todas as
maneiras, naquela mesma noite, os parentes dos Lake, porém a tarefa
se mostrou muito mais difícil do que acreditara ser. Por volta das
duas da manhã, Anna teve que ceder ao cansaço e descansar durante
algumas horas no laboratório antes de ir diretamente ao endereço
dos pais de Clarisse Lake.
Nesse meio tempo Juliana permaneceu em
seu quarto, relendo alguns de seus livros que lhe haviam sido
trazidos. Ela não chorou, mas também não chegou a dormir. Também
não teria se alimentado se Anna não aparecesse no início da manhã
para leva-lá para o refeitório dos funcionários da OMM.
Depois disso Juliana passou algumas
horas sentada junto à baia de trabalho de Anna, enquanto a mesma
saíra para trazer seus avós. Essas horas foram um pouco mais
interessantes para a garota, que ficou a mirar os diversos
instrumentos e relatórios sobre a estação de trabalho. Porém
antes que a garota fosse capaz de tomar a atitude de tocar no
computador, Anna voltou acompanhada de um casal de cabelos grisalho
que ela reconheceu imediatamente.
Anna se sentiu muito mais incomodada
com a cena a seguir do que a menina orfã: os pais de Clarisse Lake
não chegaram a dirigir a palavra à Juliana, apenas fizeram
perguntas à engenheira sobre os acontecimentos no apartamento de
Jonny e Clarisse. A cientista explicou em detalhes todas as
informações que a OMM já tinha certeza sobre o caso, o que não
era muita coisa, pois a morte do casal parecia um completo mistério.
Assim que terminou essa etapa, Anna
emendou o assunto da guarda de Juliana, só que neste ponto, a
engenheira foi completamesnte surpreendida. O casal recusou
prontamente assumir os cuidados da neta, o que despertou a
exasperação na engenheira:
― Vocês preferem que a neta de
vocês vá pra um orfanato ou algo assim?! ― perguntou Anna, sem
conseguir se conter em seu estupor.
― Não preferimos. ― disse a mãe
de Clarisse Lake, com um tom áspero. ― Nós sabemos que Jonny
pretendia colocar a filha nesta missão que vocês estão preparando.
Poderiam ficar com ela desde já.
Anna ficou boquiaberta. A frieza com
que tratavam a situação era anormal. E sequer se referiam à neta
pelo nome.
― Como podem ser tão frios? ―
questionou a engenheira, sem esconder a indignação com aquela
atitude. A censura era evidente a cada sílaba.
― Frios? ― repetiu a mãe de
Clarisse Lake, com um tom de superioridade. ― Você não conhece
essa pequena estranha. Provavelmente ela ficará aliviada em não vir
conosco.
A engenheira correu os olhos para
Juliana, mas esta parecia completamente alienada à conversa,
passando os olhos pelas páginas de um dos relatórios que havia
pegado da mesa.
― Ela é só uma menina. Uma criança
que perdeu os pais. Como podem julgar uma criança desse jeito?
― Faça o que quiser, assinaremos o
que for preciso. ― cortou o avô de Juliana, ignorando a indagação
de Anna. Dizendo isto, pegou a esposa pelos ombros e saíram da sala
sem dizer mais nada.
Demoraram alguns minutos para que Anna
conseguisse se acalmar o suficiente para olhar de volta para Juliana.
Uma sensação de impotência se apoderou do seu peito. De repente
Juliana tirou os olhos dos papéis e lhe fintou:
― Não se importe com isso. Eles
nunca gostaram de mim. ― disse a garota, com sua inalterável
expressão vazia de emoção. Expressão essa que fizeram os olhos de
Anna arder.
― Você não fica mal por isso? ―
a engenheira era incapaz de decifrar aquela pessoa tão jovem à sua
frente. A sensação de incapacidade estava ao máximo naquele
momento.
― Acho que não. ― foi a resposta
de Juliana Lake.
Anna só viu aquela jovem mais duas
vezes, na semana seguinte. Foi incapaz de fazer alguma coisa para
mudar a decisão dos pais de Clarisse Lake. Ainda que tentasse ao
máximo ajudar a orfã, por fim foi vencida pela frieza e distância
de Juliana. Abandonou aquela missão e pediu transferência. Aquele
fora o caso mais difícil que enfrentara na carreira. A cientista
partiu para a unidade da OMM na Europa sem saber o que aconteceria a
seguir com a única descendente do renomado Jonny Lake.